quarta-feira, 30 de julho de 2008

A MENINA E O MAR by Marco Angeli


Sueny Kellen viu o mar pela primeira vez em sua vida
no dia 14 de julho, aos 13 anos.
Sueny nasceu completamente cega.
Isso só foi possível graças à uma atitude no mínimo
inusitada, num mundo doido onde pais jogam os próprios
filhos pela janela ou na sarjeta.
Sueny recebeu, como doação, a córnea do menino João Roberto,
assassinado aos 3 anos por PMS no Rio de Janeiro dentro
do carro de sua mãe, que foi metralhado.
Sueny provávelmente terá 40% da visão do olho direito
recuperada. 

A menina e o mar, felicidade

Inevitável a reflexão sobre as pessoas e sua postura
diante da dor, da morte.
Inevitável a reflexão sobre a possibilidade, ainda,
de se acreditar...ou da ausência quase crônica de fé que infesta, o
tempo todo, nossos corações e mentes.
A atitude da família do menino imediatamente após sua
morte trágica- sem hesitações- em doar seus orgãos para
que outro ser humano pudesse usá-los é uma mostra
clara de que é possível ainda ter fé, mesmo em situações
extremas como a perda de um filho nessas ciscunstâncias.
Eu, honestamente, não consigo sequer imaginar
a sensação. Nem posso.  

 O menino João Roberto Amorim Soares, morte aos 3 anos 

Nós todos- sem exceção- e o mundo...deve um 
agradecimento à família desse menino.
Porque ela nos ensina, humildemente, sem alarde,
uma lição que há muito parece ter sido esquecida:
a de solidariedade entre seres humanos.
Nos ensina que a bondade ainda é mais que uma palavra
anacrônica, esquecida em algum momento em nossas
vidas corridas, adreniladas e...egoístas.

Paulo Roberto Soares, pai de João Roberto: força

Outra das córneas foi doada para uma menina,
no dia 9 de julho. Larissa Ludgero, de 8 anos.
Não sabemos ainda se a operação foi bem sucedida.
Mas a expectativa é positiva.

Sueny, gratidão

O transplante de córnea de Sueny e Larissa pode 
ainda- infelizmente- ser considerado quase um milagre.
Foi realizado no Rio de Janeiro, onde a situação dos
hospitais beira o caos, ou o surrealismo.
Por falta de verbas existe uma fila imensa de pessoas
aguardando transplantes. Faltam, nos hospitais, até o 
líquido para acondicionar os orgãos para transplante.
Conversava outro dia, no velho sofá vermelho do Graal,
com uma amigo carioca, sobre a situação lamentável em
que se encontra essa cidade maravilhosa que é
o Rio de Janeiro, e sobre a atuação miserável dos
chamados políticos que agem por lá. Triste.
Triste para quem, como eu, sempre adorou o Rio.

Larissa, 8 anos, esperança

A palavra esperança, no entanto, cabe e sobrevive aqui.
Paulo Roberto Soares e sua família reforçam, com este gesto, seu
significado. E mostram ao mundo que seu
filho, apesar de morto de forma trágica,
sobreviverá. Na esperança e nos olhos de duas meninas
que tiveram suas vidas mudadas para sempre.

Marco Angeli, julho de 2008 
 

4 comentários:

  1. Não há mais nada que eu possa escrever para imaginar o impacto que esse texto causou. O mais bacana de tudo é que não ficou um texto forte, ficou sereno. Uma pena que hoje a gente viva baseado nas desgraças alheias. O mais fascinante de tudo é que o João Pedro vai continuar vivo, nas nossas memórias, nos corações e principalmente no olhar dessas duas lindas meninas. Marco parabéns mais uma vez, eu piro com seus comentários, suas idéias, ainda acho que você tem que escrever um livro... Agora pensa.. Olhar a imensidão do mar é ferozmente inacreditável. A gente tem isso e muito mais todos os dias. A sua visão dessa história me fez valorizar mais esse dom e a vida... Você é um Gênio lindo.


    Daniela Camargo

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  2. Da série Grandes Reportagens, do Estadão, a reportagem que aborda a questão dos sobreviventes, em meio à violência das periferias da nossa cidade, nos dá uma noção do que é viver à margem da sociedade. Ainda há muito por fazer. Solução? Não sei a receita. A história da humanidade nos mostra que a violência sempre esteve no DNA do homem. O agente transformador, a meu ver, são as oportunidades geradas pela educação, que ao longo da vida, pode fazer com que a criança, ao se tornar adulta, construa o seu próprio destino.

    elisa

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  3. E maravilhosas tuas palavras, que nao deixaram passar em branco uma tragedia que mesmo envolta numa dor imensa e de revolta, findou numa acao benemerita de muito amor. Poderia ter ficado calado,mas o sentimento e a sensibilidade te fizeram escrever um texto tao marcante.Faz nos lembrar que realmente de um lodo pode se esperar uma flor d lotus. O mundo ainda possui pessoas incriveis como os pais deste menino e vc.

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  4. Muito lindamente escrito Marco.
    Emocoes muito fortes, dar a luz, devolver filhos ao ceu, ganhar 5 anos de vida para um filho e poder ser profundamente grata por esta dadiva sabendo quao imensuravel e a dor de uma mae, de um pai que vivenciam a partida de um filho. A partida de um e um presente de vida para outro.
    Bettina

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