sexta-feira, 16 de julho de 2010

SÃO VICENTE by Marco Angeli


Convidado para executar algumas pinturas para 
o novo restaurante da rede Mania de Churrasco, as conversas que
tivemos, eu e o Alessandro Pereira, sócio da rede, acabaram por tomar
rumos interessantes e terminamos fazendo uma pequena homenagem à
cidade de São Vicente, onde o restaurante está instalado.
A homenagem acabou virando uma mostra desses trabalhos,
que estarão em exposição permanente. O que é bem 
bacana, claro, principalmente porque gosto de ter meus trabalhos 
relacionados, sempre, com a história que eles contam.  
Uma espécie de resgate, talvez, feito através da pintura.
Durante todos esses anos, desde que comecei a pintar figurativo,
tenho me envolvido nesse processo, quase que por acaso, de ir
aqui e alí contando um pedacinho da história de algumas cidades,
de suas ruas, de seus prédios. Sou fascinado pela história das pessoas
e de seu habitat. Principalmente por São Paulo.
Acabei finalmente escrevendo um texto de apresentação dessas obras
que acabou virando parte da mostra também.

 O convite da inauguração do restaurante, semana passada

Estivemos na inauguração do restaurante, semana passada, e foi um
prazer grande ver o esmero com que tudo foi feito por alí,
o cuidado no tratamento de detalhes, etc. E meus trabalhos, claro,
muito bem colocados. Notem que nem falo dos pratos,
que são muito bacanas mesmo. É só comparecer
e verificar...e vale a pena, realmente.
Enfim, aí estão o texto e as obras:

São Vicente 
Lembro ainda quando -ainda menino- passava as férias em Santos
e São Vicente, levado por meu pai.
Aquelas temporadas eram sempre mágicas e traziam consigo o cheiro do mar,
as brincadeiras com os outros meninos, um prazer grande que era sempre
lamentado quando finalmente terminava e voltávamos para casa.
Hoje, depois de tanto tempo, eu retrato, numa espécie de modesta homenagem,
a cidade de São Vicente a pedido dos restaurantes Mania, o que me traz
grande satisfação, principalmente por focarmos essas obras num resgate dos anos
40, 50, a São Vicente de meu pai...
São Vicente é a primeira vila fundada pelos portugueses no Brasil, em 22 de janeiro de 1532,
por Martin Afonso de Sousa, o que lhe confere um status histórico
e o título de 'cellula mater' de todos os municípios brasileiros.
A biquinha da cidade é quase seu cartão postal, entre outros, como a ponte Pensil.
Fundada em 1553, teve uma participação vital na história da cidade,
que se formou à sua volta, devido à importância do abastecimento de água..
Foi reformada várias vezes e teve, à partir de 1943, uma delicada escultural central
feita em terracota pelo artista Domingos Savorelli, que acabou resistindo
poucos anos, sendo substítuido  por um painel em ceramica do artista
Waldemar Moral Sendin, que existe até hoje.
Meu retrato da biquinha mostra ainda o painel em terracota, maravilhoso.

 Biquinha de São Vicente, 1947, 250 x 155 cm, carvão e acrílico sobre canvas.

 Biquinha, detalhe. 

A Ilha Porchat tem uma rica história, cheia de lendas, e foi chamada de diversos nomes,
como Ilha do Mudo, Ilha das Cobras, Ilha das Cabras...e cada um desses nomes traz consigo
uma lenda que o justifica. No início do século dezoito foi comprada por um dos membros
da família Porchat, e finalmente adquiriu seu nome definitivo.
Devido à sua posição estratégica na entrada da Baía de São Vicente, se transformou
no marco da cidade para quem vinha do mar.
A visão que se tem de seu topo é magnifíca, imponente, e sempre atraiu turistas,
visitantes... e conta-se até; piratas que alí escondiam seus dobrões de ouro.
Lendas sobre a ilha existem, muitas, e a enriquecem.

  Ilha Porchat, 1955, 132 x 155 cm, carvão e acrilico sobre canvas.

 Ilha Porchat, detalhe

A Ponte Pensil de São Vicente foi projetada 1910 numa parceria entre a
Comissão de Saneamento de Santos e uma empresa alemã
que envolveu o engenheiro alemão Augusto Kloene, que desenhou
seu primeiro projeto.
Foi baseada no exemplo americano das pontes do Brooklin, de 1883, e da
ponte de Manhattan, em New York, inaugurada em 1909.
Suas obras se iniciaram em 1911 e foi inaugurada e aberta ao público no dia
21 de maio de 1914 numa festa memorável, que causou inclusive seu primeiro
congestionamento e seu primeiro acidente:um motociclista de São Paulo bateu
na traseira de um coche e caiu, fraturando o cranio.
A ponte é um dos marcos históricos importantes não só da cidade mas de toda
a região. Cuidada com carinho, hoje permanece ativa e é protegida pelo
Conselho de Defesa do Patrimonio Histórico, Arquitetônico a Artístico nacional.

 Ponte pensil, 1940, 132 x 155 cm, carvão e acrilico sobre canvas.

Ponte pensil, detalhe.

Um dos símbolos da cidade nos cartões postais, o Marco Padrão foi construído
 em 1932, sobre o ilhéu Pedras do Mato, para comemorar o
quarto centenário da fundação de São Vicente.
É um dos cartões postais da cidade, e seu desenho contém a história da
primeira cidade brasileira.

 
Marco Padrão, 1950, 132 x 155, carvão e acrilico sobre canvas. 

 Marco Padrão, detalhe 

A praia do Gonzaguinha é -como sempre foi- uma das praias mais agitadas e movimentadas
de São Vicente. Próxima do Centro e de suas atrações históricas,
é palco todos os anos da encenação da chegada de Martim Afonso de Sousa.

 
Praia do Gonzaguinha, 1950, 132 x 155 cm, carvão e acrilico sobre canvas.

Praia do Gonzaguinha, detalhe 

As cinco pinturas que fiz usando esses marcos históricos de São Vicente ainda são
um pequeno espaço para mostrar toda a riqueza da cidade, mas servem simbólicamente
como uma homenagem à São Vicente, que com certeza a merece.
E, no meu caso especialmente, por estar em meu coração, nas lembranças
de minha infância.

O restaurante Mania de Churrasco, no Shopping Brisamar:

O restaurante, em sua inauguração.

Meus agradecimentos, especialmente, ao Alessandro, à Priscila,
ao Filliphe e ao Gutto, do marketing, pela paciência.

Marco Angeli, julho de 2010

segunda-feira, 12 de julho de 2010

INTERVIEW, MARCO ANGELI by Fabricio Brandão e Leila Andrade


Entrevista dada à revista eletrônica Diversos Afins,
em sua edição comemorativa de aniversário, junho de 2010: 



PEQUENA SABATINA AO ARTISTA 
Por Fabrício Brandão
 A forma como alguém se expressa artisticamente encerra uma infinidade
de perspectivas, muitas delas a ganhar corpo novo quando aos olhos dos
apreciadores vêm se juntar, oportunamente, repertórios individuais de mundo.
Talvez o objetivo maior da arte seja o de se libertar, propondo um salto ao universo
alheio para ali se instalar de maneira até mesmo surpreendente.
Tentar entender o que cada ser carrega em si é um questionamento pouco
relevante frente ao universo de temáticas a serem percorridas.
Ousando contrariar alguns postulados, navegar é preciso; viver, mais ainda.
E ao fazer de seu ofício um instrumento que se desloca no tempo, no espaço e nas
consciências, o artista deixa aberta a marca da sugestão, talvez a maior de
suas ferramentas no diálogo com um outro que, à primeira vista,
cercado está por seus mistérios. 
Através do trabalho de um alguém como Marco Angeli, estão impressas
certas razões indeléveis para crer da arte um movimento incessante de transformação.
Paulista de nascimento, Marco viu surgir seu ofício ante uma metrópole
que se impunha não somente pela sua imponência espacial, mas, sobretudo,
pelo sentido que as passagens humanas emprestavam à dinâmica do lugar.
Para além dos homens e suas intervenções materiais,
interessa ao artista voltar seus olhos
às histórias de vida contidas nas pessoas.
E é nesse aspecto que se revela um criador capaz de
transpor a barreira avassaladora de um
banal anonimato imposto por uma grande cidade aos seus habitantes,
conferindo-lhes, por intermédio de suas telas, uma nova existência,
quiçá uma identidade notadamente subjetiva.
Adepto do figurativismo, Marco Angeli faz do estilo algo além de uma proposta
meramente descritiva da realidade, expondo-nos signos que
transcendem a visão aparente das coisas.
Com experiências que transitam por desenhos, pinturas, ilustrações e, também,
pela publicidade, o artista recebeu a Diversos Afins para uma conversa
sobre sua carreira e, em especial, sobre o modo como
se depara com a gestação de sua criação.

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DA - Há um quê de memória afetiva no modo como você retrata os
homens e seus lugares.
 De que maneira tal característica se estabelece no seu processo criativo?
 

MARCO ANGELI - A expressão artística, enquanto verdadeira,
sempre é a impressão digital do próprio artista.
Ou sua alma, o reflexo de sua vivência.
Assim como soa falso o texto escrito por um escritor sobre um tema que
ele desconhece ou conhece pouco, também o é com a pintura, meu fascínio.
E o foco central de todo meu trabalho sempre foi o ser humano.
Sou fascinado pelas histórias das pessoas. Quando retrato a cidade e seu centro antigo o
que está ali é a sensação do menino que,
levado pela mão do pai, passeava por ela assombrado pelos edifícios, que observava,
maravilhado, cada detalhe das estátuas imponentes, dos arabescos de seus portões
de ferro artesanais, da luz incidindo por suas ruas.


 
2006, São Paulo 1950, carvão/acrilico sobre canvas

Mas, acima de tudo, o menino imaginava quem seriam os homens que a construíram,
e o que os impulsionava.
Esses anônimos estão aqui e ali, em minhas obras, preocupados com uma coisa qualquer
em suas vidas naquele momento.
Interagindo com a paisagem urbana que dia a dia ajudavam a construir.
Assim como meu pai. Cada homem ou mulher presentes ali, naquela cidade,
representam simbolicamente a minha origem, meus próprios pais que, descendentes
de imigrantes, passeavam, amavam e viviam naquela cidade enorme. 


DA - A cosmopolita cidade de São Paulo tem uma presença marcante
em sua obra, sobretudo no que se refere ao enfoque histórico.
No complexo universo de uma metrópole como esta,
onde as identidades aparecem um tanto dispersas,
o que você acredita ser o maior desafio do artista?
 

MARCO ANGELI - A maior dificuldade não é, sem dúvida, representar
figurativamente ruas, edifícios ou pessoas.
São Paulo é um enorme caldeirão de culturas e, durante séculos, absorveu indiscriminada
e generosamente os hábitos, costumes e folclore dos povos que recebeu.
Vemos, claramente, por exemplo, a influência europeia na arquitetura do Centro Antigo,
mas em 1940, 1950, por suas ruas passeiam carros com design tipicamente norte-americano.
E as pessoas usam livremente as roupas de sua cultura,
especialmente nessa época.
De certa forma, os anos 40 e 50 são marcantes no sentido de expressarem mais fortemente
esse mix da cidade.
Basta ver quantos grandes artistas, como Alfredo Volpi,
tiveram sua fase mais fértil naqueles anos.
São Paulo é uma cidade que, sob vários aspectos, talvez possa ser considerada uma
metrópole precursora desse movimento de globalização que hoje vivemos,
quando agregou às suas próprias características as dos povos que para ela vieram,
sem preconceito ou limites.


2007, São Paulo 1930, carvão/acrilico sobre canvas

A cidade respira essa mistura, e esta sensação está em suas ruas, presente.
A maior dificuldade, então, é justamente conseguir transmitir através da pintura figurativa
essa sensação, que é subjetiva. Esse sempre foi meu grande desafio.
Em 1990, eu preparava minha primeira mostra figurativa, depois de pintar abstrato durante
alguns anos, e meu tema foi justamente a Avenida Paulista e suas madrugadas.
Ora, o que eu via eram as luzes incidindo, frias, sobre a avenida deserta, sobre as poucas
pessoas que perambulavam por aí.
 

1989, esboço para pintura São Paulo

Era, antes de tudo, uma sensação subjetiva,
mas presente nos postes e edifícios que, impassíveis,
compunham a arquitetura da cidade.
Confesso que o que achei muito fácil no início
se transformou de imediato numa tarefa árdua, sofrida.
Eu pintava e repintava as telas e elas me pareciam esteticamente dentro do que eu queria,
mas a sensação me escapava por entre os dedos.
Fiz o melhor que pude e elas foram para a mostra, que aconteceu numa galeria da própria Paulista.
Surpreendentemente, a reação dos que as viram, na vernissage,
foi a de interagir absolutamente com elas.
Alguns executivos que passavam justamente por aquelas cenas todos os dias
comentavam comigo que aquelas visões eram inéditas para eles, principalmente por se
sentirem transportados para dentro delas imediatamente.


1990, Avenida Paulista, técnica mista sobre canvas

Foi nessa época que comecei a admirar a beleza e a capacidade gigantesca que tinha
Edward Hooper de nos envolver nessas sensações com suas pinturas.
A pintura de Hooper, apesar de figurativa,
de uma beleza e técnica incomparáveis, é pura sensação.
Não há como não ser transportado para dentro delas, quase sentir seus cheiros,
a brisa que entra pelas suas janelas.
Só mais de dez anos depois, ao observar novamente
esses meus trabalhos sobre a madrugada na
Paulista, consegui entendê-los um pouco melhor, perceber o resultado daquele esforço.
E, passado muito tempo, quando alguém,
diante de uma de minhas obras sobre São Paulo comenta
entusiasmado que conhece essa ou aquela esquina, que passava todos os dias
por ali para ir trabalhar,
que no inverno o frio era terrível, sinto que de alguma forma
consegui meu objetivo ali, naquele momento.
Lamentavelmente, entretanto, foi também o registro histórico de uma depredação sem igual.
No final de 1989, quando captava essas imagens, construía-se ali o metrô e vi
grandes casarões, historicamente de grande valor, serem demolidos numa única noite,
para burlar a lei do patrimônio histórico.
Casarões como o de Horácio Sabino, construído em 1903 e assinado pelo
arquiteto francês Le Courbisier viraram escombros.


2009, São Paulo 1940, carvão/acrilico sobre canvas

Sintomático da triste condição da cultura no país.
O maior desafio, então, não é o simples registro
figurativo de uma época histórica da cidade,
mas a interação pela sensação do ser humano na paisagem urbana,
uma forma de viver que foi mudando rapidamente, como tudo em São Paulo muda.
Com o tempo, e pela própria característica de meu trabalho,
que é basicamente sob encomenda, meu interesse sobre as cidades foi ficando
mais abrangente, e pintei New York, Madrid, Paris e outras cidades do mundo
que têm uma carga histórica forte e marcante, além, é claro, das capitais brasileiras,
como o Rio de Janeiro, que é maravilhoso.
Mas São Paulo tem essa conotação forte para mim como origem,
a minha origem, e será sempre especial.

DA - O figurativismo pode significar bem mais do que uma mera
representação da realidade, pois é capaz de conferir uma noção mais dinâmica e,
 talvez, menos passiva ao objeto retratado.
Como lidar com esta via transformadora na sugestão de novos sentidos?
 

MARCO ANGELI - Durante alguns anos, a partir de 1984, eu estudava e pintava abstrato,
baseado principalmente em Tomie Ohtake, Manabu Mabe, Paul Klee e Fukuda,
com quem havia trabalhado anos antes.


1984, abstrato, acrilico sobre canvas

Fiz algumas exposições dessas obras a partir de 1985 aqui no Brasil e, finalmente,
parei com o abstrato em 1990, com a mostra sobre a Paulista.
A pintura abstrata, por não ter um referencial objetivo e ser conceitualmente subjetiva,
emocional, é passiva de múltiplas interpretações que fogem do controle,
inclusive, do artista que a criou.
Consequentemente, a sensação - ou a alma da obra - é transmitida sem qualquer
comprometimento com a realidade objetiva.

1985, abstrato, acrilico sobre canvas

Na pintura figurativa, há esse comprometimento profundo com a realidade, e o objeto retratado
tem necessariamente que conter e transmitir uma emoção definida pelo autor.
Se isso não existir, tratar-se-á apenas de um exercício de técnica e mais nada.
Não importa se a técnica é péssima ou excelente, sem emoção não há alma,
e sem alma não há arte.
Conheci e apreciei, durante toda a minha vida, excelentes técnicos com um domínio maravilhoso
do que faziam, mas eram sempre trabalhos vazios, exercícios apenas,
a técnica como princípio e objetivo.
Por outro lado, quando se tenta retratar figurativamente a emoção que um objeto qualquer
possui, as possibilidades são praticamente infinitas, mesmo que exponham ícones
 comuns à maior parte das pessoas.
Para usar um exemplo rudimentar, qualquer artista sabe que certas cores, quando aplicadas,
transmitem dinamismo e tensão, como o vermelho, agitação e vibração como o amarelo,
e assim por diante.
Ou que o movimento frenético do traço passa agitação e inquietação, e linhas suaves
transmitem paz e serenidade.
Ora, isso é a base da pintura abstrata, que lida com esses elementos fundamentalmente
para transmitir o que quer. Na pintura figurativa, soma-se a esses elementos a imagem
representada, real, que tem sua própria carga e conotação.
Esse é o grande fascínio que a pintura figurativa exerce
sobre mim - a mistura e subversão desses elementos, desses ícones, que é
praticamente sem limites.

2008, New York, carvão/acrilico sobre canvas

A interpretação do artista sobre a realidade é única e individual, assim como a
do espectador que observa a obra.
O artista induz com sua obra através dessa mistura ou de um olhar mais criativo
sobre os próprios ícones, como fez Andy Warhol na pop art com suas
latas de sopa Campbell, por exemplo.
Novos caminhos e novas interpretações, assim, são infinitas e jamais cessarão.
O próprio sistema social é mutante, rápido, e fornece um
material abundante para isso. Basta querer ver. 

DA - Em sua carreira, você também desenvolveu trabalhos
voltados para a publicidade.
Na sua opinião, até que ponto os ditames mercadológicos limitam
as possibilidades de criação? 


MARCO ANGELI - O trabalho para a publicidade, que desenvolvi, desde o início
de minha carreira, me deu uma consciência e formação profissionais que
muitas vezes entram em conflito com o mercado de arte existente por aqui.
Na publicidade a imposição do mercado é óbvia, pois, afinal, é exatamente
para o que ela existe - para vender - e o foco de tudo que é produzido
é voltado exclusivamente para isso, desde textos a ilustrações, etc.
Além disso, mesmo em editorial, jamais existe o trabalho individual, autoral.
Tudo sempre é feito num consenso mútuo que envolve diretores de criação,
diretores de arte, redatores, atendimento, etc.
Em outras palavras, não importa a genialidade ou qualidade de determinado trabalho,
ele será bom se vender ou péssimo se não vender.

1980, ilustração para publicidade, Benetton

Isso é muito claro, fácil de entender e viver, sendo profissional.
A arte supostamente não deveria ter nada a ver com isso tudo,
com as imposições de mercado.
Mas não é o que aparentemente se vê por aí. A partir do final dos anos 90, o mundo passou
por revoluções profundas e, com uma velocidade espantosa,
presenciamos, atônitos, uma grave crise financeira mundial que se originou
na Ásia em 1999, a internet que se afirmava definitivamente mudando o comportamento
pessoal e profissional de praticamente todo habitante do planeta e
o fatal 11 de setembro de 2001, que abalou o coração financeiro do mundo.
Mudanças com essa dimensão obviamente foram decisivas para delinear e
definir o mundo em que vivemos hoje.

 1976, ilustração, airbrush, publicidade

No Brasil, especialmente, onde a valorização do capital por ele mesmo, acima de qualquer
outra coisa, é um fato incontestável, tudo parece - inclusive a cultura - ter o mesmo
foco que a publicidade sempre teve: o que vende é bom, e o que não vende
não precisamos nem saber se é bom ou ruim, não presta.
Na arte e na cultura, temos ainda um agravante, o do mercado valorizar apenas o
que é certo e líquido, instituído, que tenha receita garantida.
Isso eterniza velhas fórmulas e velhos nomes, um procedimento padrão arcaico
em relação à arte, uma repetição incansável de mesmices.
Sempre tive uma preocupação excessiva em relação a definir claramente arte e publicidade
em meu trabalho como funções completamente distintas, e a consciência de que,
se um dia se misturassem, de alguma forma, perderiam ambas seu valor,
simplesmente porque são fundamentalmente diferentes, com propostas antagônicas.

 1975, capa Playboy São Paulo

Foi assim que só comecei a pintar e expôr depois de muitos anos de atividade
profissional em publicidade, só quando pude ter certeza de que não dependeria
financeiramente da pintura nesse momento.
Isso era fundamental, e foi o que fiz.
E foi a base que me garantiu liberdade, que tenho até hoje, quando praticamente só
exerço a pintura como atividade profissional.
Essa liberdade me permitiu uma volta às origens, de certa forma.
É meu trabalho atual. Estudei e executei exaustivamente técnicas como óleo, aquarela,
airbrush e outras, e as executo bem.
Mas, a partir de um determinado momento, a técnica em si deixou de me interessar e
voltei às minhas origens: a criança que desenhava rabiscos
na parede de casa com um lápis preto.
Ou, mais radicalmente, ao homem de Neandhertal que contava as histórias de suas caçadas
com um carvão na parede de sua caverna.

1997, New York, óleo sobre canvas

Hoje, faço o que gosto e minha mão se move e desenha da forma como gosto.
Lamento, no entanto, que graças à conduta desse mercado o caminho
se feche para novos artistas, justamente para os que são mais criativos, que oferecem
novas fórmulas, novos olhares.
Na correria atrás do retorno financeiro imediato e por pura covardia de encarar o novo,
o mercado os isola, cruelmente. E os deixa à míngua.
Estamos cansados de ver grandes talentos sem colocação alguma, mal sobrevivendo.
Ao invés de aprender com as lições que nos deixaram as histórias de Van Gogh ou
Paul Gauguin, o dito mercado de arte as repete indefinidamente, não compreendendo
que o trabalho do artista quase sempre transcende sua época e
somente é entendido em sua íntegra muito tempo depois.
Não indo tão longe, ouvi, há tempos, uma entrevista na qual Aldemir Martins
afirmava que durante muitos anos pintava uma tela hoje para pagar as contas amanhã.
Ou Volpi, que pulava de alegria quando vendia uma de suas pinturas,
o que garantia o pagamento do aluguel.

 1983, óleo sobre tela, São Paulo

A cultura de um povo se estabelece pela convivência e parceria entre os velhos
e já consagrados nomes com os jovens criativos, que tem novas e instigantes propostas.
Isso se chama renovação. O contrário, a cultuação perene de velhas e rentáveis ideias,
é uma estagnação cultural. Que vive de repetição.
Some-se a isso a quase total indiferença das entidades governamentais
em relação ao assunto e temos um esboço definido do que vivemos hoje culturalmente.
Desconsiderando-se, claro, uma pequena elite, temos um resultado desolador,
com programas de reality show, novelas ou apresentadores de programas de auditório na
TV como ícones da cultura brasileira.
Ironicamente, e não por acaso, a publicidade e a música brasileira são
reconhecidas entre as mais criativas do mundo.
Graças, talvez, ao capital injetado nesses canais e ao apoio da mídia,
sempre que interessa. Não é o caso das artes plásticas ou literatura, por exemplo.

DA - Há muitas distorções no papel
desempenhado pela crítica de arte no Brasil?


MARCO ANGELI - Não há muito o que eu possa dizer a respeito da crítica,
já que desenvolvo meu trabalho de forma completamente independente,
como outros artistas que conheço, os quais procuram maneiras mais modernas
e criativas de trabalhar e colocar seus trabalhos.
Aliás, é algo em que deveríamos pensar.
As mudanças radicais que o mundo sofreu, nos últimos dez anos, impõem mesmo
uma nova postura e uma nova forma de se olhar para a arte e como ela
é colocada no mercado, e esquecer as velhas e arcaicas formas de se lidar com isso,
pois estas só favorecem mesmo aqueles que pretendem que o mundo
seja o mesmo de trinta longos anos atrás.

 2010, esboço para pintura

Parece-me que a crítica de arte, tal como a víamos anteriormente,
desfigurou-se completamente, absorvida pelo mercado e seus ditames.
O mesmo processo que detonou o 'romantismo' existente na publicidade nos
anos 60 e 70 parece ter afetado a crítica, a qual acabou se amoldando ao esquema
da valorização absoluta do capital e perdeu
seu real e verdadeiro sentido.
As distorções que existem, então - e são muitas - atuam principalmente sobre os novos artistas,
justamente os que mais precisam do apoio da crítica. E não têm.
Mas, pessoalmente, acredito que o maior crítico
de seu trabalho é o próprio artista, e mais ninguém.
E que o maior impulsionador de seu trabalho são as pessoas, não necessariamente
entendidas, que o apreciam e compram.

 2008, Masp, carvão/acrilico sobre canvas

Há uma certa ingenuidade em pensar que eternas discussões filosóficas nos levarão muito mais
longe do que esses princípios simples levam. Não levarão.
A força e a tenacidade com que um artista luta para colocar seu trabalho
serão sempre os fatores fundamentais e decisivos para seu sucesso ou fracasso.
Há uma frase significativa do empresário Ray Kroc,
fundador da rede McDonald's, que pode ser
aplicada no caso, a qual diz que talento sem perseverança não serve para nada.
'Cansei de ver grandes talentos fracassarem por falta de tenacidade', disse.
Mais ou menos o que Picasso quis dizer com 'arte se faz
com 99% de transpiração e 1% de inspiração'.

DA - A celeuma em torno do conceito do objeto de arte
parece ser algo infindável, como se todos atirassem para todas as
direções em meio à escuridão.
Nesse sentido, você acha que a dita pós-modernidade foi longe demais?


MARCO ANGELI - Não, claro que não foi.
Há muito o que se fazer desde o anarquismo de Hélio Oiticica, que abriu uma
porta genial e necessária.
Não acredito de forma alguma em arte desvinculada de seu tempo.
Mesmo que, improvavelmente, se volte para o futuro, a obra de arte usa e se
alimenta de referenciais, conceitos e materiais da época em que é produzida
e é um resultado da cultura em que vive.
E o mundo se move hoje a uma velocidade espantosa, evoluindo tecnicamente para
um futuro quase inimaginável, subvertendo as velhas noções que tínhamos sobre
relacionamento humano e disponibilidade de informações, as quais são fornecidas
às toneladas e ininterruptamente.

 
Miles Davis, 2006, carvão/acrilico sobre canvas

A espiritualidade do ser humano, entretanto, não parece evoluir com a
mesma velocidade e nem ao menos acompanhar de longe essa enxurrada tecnológica.
Quando pinto a cidade de 1950, eu a pinto daqui, de nossa época,
e não como a pintaria um artista em 1950.
É, acima de tudo, uma reflexão sobre os caminhos de nossas vidas e de
nossa espiritualidade, inseridos nessa paisagem urbana.
Não simplesmente um resgate, mas uma análise sobre as mudanças que sofremos
para melhor e para pior.
Em contraponto, pinto também a cidade de hoje.
Reflexões que estão igualmente nos portraits das pessoas que pinto.
Cada uma delas traz consigo uma identidade, uma alma que procuro captar, i
ndependente da época. São momentos, e únicos.
Esta mesma onda impulsiona todo e qualquer artista desse tempo,
fornecendo como nunca antes material e recursos infindáveis para seu trabalho.
A arte é a busca eterna da espiritualidade, e as respostas estão na convivência
forçada ou não que temos com o mundo em que vivemos, com o lixo que ele produz,
com a internet que o guia, com a desigualdade social, com uma linguagem
virtual recém-descoberta, e com a nossa própria incapacidade
de digerir completamente tudo isso.

  
Bruna Tang, portrait, 2010, carvão/acrilico sobre canvas

É com isso que a arte lidará, este é seu material hoje, como foram em 1965
os parangolés de Hélio Oiticica.
Mas, hoje, mantendo-se as devidas proporções, talvez não ocorresse com um artista
mais ousado o mesmo que aconteceu com Hélio em 1965, quando foi expulso
de uma mostra no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
causada justamente por seus parangolés.
Atualmente, graças à difusão enorme de informações pela internet,
há uma confusão enorme em torno do objeto de arte, que coexiste com uma certa
tolerância passiva em relação a tudo o que aparece e é chamado de arte.
É, ao mesmo tempo, um aspecto negativo, que gera lixo, mas tem seus
aspectos positivos também.
Aparece cada vez mais frequentemente, por exemplo, uma expressão que
designa um novo tipo de artista, o multimídia, que exerce diversas
atividades culturais e não apenas uma. Este artista pode pintar, fazer música ou
escrever, tudo simultaneamente.
O conceito do artista multimídia é extremamente inteligente e absolutamente necessário
na época em que vivemos, enquanto derruba algumas barreiras culturais importantes.
A principal delas é a que invalida, por puro preconceito, artistas que tenham
atividades diferentes. Um engenheiro ou arquiteto que mostre um trabalho de pinturas
sempre é visto com certa suspeita. Ou um publicitário que faz música.
É algo frequente, e eu mesmo convivi com isso diversas vezes.
Hoje, com a possibilidade democrática e praticamente infinita que a internet
proporciona através das redes sociais, qualquer trabalho cultural pode ser mostrado
indefinidamente e terá seu sucesso ou fracasso definido não mais por uma pequena
e fechada elite cultural preconceituosa, e sim pela própria comunidade
em que está sendo difundido.

 2009, São Paulo 1950, carvão/acrilico sobre canvas

Essa comunidade é, em última análise, o mundo.
A perspectiva é fascinante e nunca antes, na história da humanidade, o objeto cultural
foi submetido a uma exposição tão intensa e democrática.
Com o tempo, provavelmente, e de forma automática, a própria comunidade
irá estabelecendo conceitos e separando o que tem ou não valor.
Se assim fosse em 1965, provavelmente o anarquismo de Helio Oiticica
teria sido melhor compreendido. Ou o de Glauber Rocha, entre tantos outros.

DA - Retratar a vida e seus atores tem uma conotação
fortemente subjetiva, algo que motiva as criações dos mais variados
artistas e, por vezes, parece se situar num terreno indefinível.
O que você considera mais instigante nestes signos despertados pela arte?  


MARCO ANGELI - Interessante refletir sobre esse aspecto, já que nunca tive
grandes preocupações com isso.
Meu trabalho foi evoluindo, durante esses anos, de uma forma natural e quase intuitiva,
e meu foco em relação ao assunto foi ficando mais apurado.
O resultado disso foi uma busca interna minha e pessoal pela simplicidade quase absoluta.
Muitos anos de publicidade com uma pressão constante por fórmulas mágicas e
criativas para velhas ideias acabaram me cansando e me fazendo ver que,
com raríssimas exceções, muito pouco se criava realmente no sentido literal da palavra.
Apenas aplicavam-se velhas fórmulas com uma roupinha nova.
Objetivamente, ou se é criativo ou não.
Criatividade não é uma profissão que se aprende, é uma maneira de se enxergar o
mundo e as pessoas. Uma maneira que se vive.
Com esta consciência, optei pela simplicidade, em fazer o que gosto, apenas.
Não havia mais a preocupação em saber como seria visto ou criticado.

 2007, Avenida Paulista, 1933, carvão/acrilico sobre canvas

Isso não cabia mais e nem era possível, em certo momento.
Era uma necessidade de expressão, de comunicação,
da forma como eu sabia fazer, nada além disso.
Foi assim também - por essa necessidade - que recomecei a escrever,
depois de muitos anos sem fazer isso.
No fundo, mais do que nunca, essa mistura de trabalhos faz com que, after all,
cada um deles carregue consigo uma história, além das que estão ali contidas e visíveis.
A minha história.
Essa é a proposta mais instigante da arte, como sempre o foi, imagino,
contar uma história com o coração.
Fica mais fácil, assim, enxergar os terrenos onde a arte atua.

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Meus agradecimentos ao Fabricio pela gentileza e pelo amável
convite para estar em tão ilustre companhia.
Desejo grande sucesso ao Diversos Afins, pelo cuidado com
que é editado e pela qualidade de suas matérias.

Marco Angeli, julho de 2010

RUA SÃO BENTO, 1929 by Marco Angeli

A Rua São Bento, em São Paulo, é uma das mais antigas
ruas da cidade. Foi aberta logo após a fundação da cidade.
Teve muitos nomes até finalmente, em 1899, adquirir de volta
o nome de Rua de São Bento oficialmente, pelo qual já havia sido
chamada anteriormente.
Junto com a rua XV de Novembro e a rua Direita formou,
no final do século XIX e início do XX, o célebre
'Triangulo Paulistano', centro da vida intelectual, comercial
e elegante da cidade. O seu cruzamento com a Rua Direita foi chamado
durante muitos anos -e ficou famoso como tal- de
'Quatro Cantos', um dos pontos mais frequentados da cidade
na época. Seu nome refere-se à igreja de São Bento, no 
largo do mesmo nome, construído em 1598, e demolido posteriormente,
para dar lugar ao mosteiro, inaugurado em 1921, que levou 
11 anos para ser concluído. Está lá, imponente e belo, até hoje.

A Rua de São Bento em 1929, em pintura de 2010

Rua de São Bento, 1929, 130 x 100 cm, carvão e
acrílico sobre canvas, junho de 2010

Rua de São Bento, 1929, detalhe.

Esta obra foi encomendada e faz parte, atualmente, da 
coleção de Otávio Sodré Santoro.

Marco Angeli, julho de 2010