terça-feira, 19 de dezembro de 2006

OS RETRATOS DA VIDA by Marco Angeli


Em setembro, eu e o Fred Lima sentamos em um café perto do Studio,
E conversávamos sobre trabalho, política....
Fazemos isso de vez em quando, quando sobra tempo...
Nesse dia falávamos sobre a época em que eu desenhava
a abelhinha para o Bradesco e ele fazia a sonorização
do personagem para os filmes de TV.
Era o começo da noite e a conversa foi evoluindo
inevitávelmente para nossas trajetórias profissionais, nossas
expectativas e o que havia realmente acontecido nestes anos todos.
Acabei comentando que gostaria de ter retratado algumas
pessoas que passaram em minha vida, pessoas comuns,
desconhecidas, que a gente simplesmente acha interessante...
Difícil fazer isso com a vida corrida que a gente leva...e
todos os etc que existem...grana, falta de patrocínio
para esse tipo de trabalho...
Mas o Fred se entusiamou com a idéia e me propôs
fazer os textos se eu fotografasse ou desenhasse os
retratos.
A idéia foi tomando forma, me entusiasmei também e acabamos
convidando a menina que servia café para
fazer as primeiras fotos, como um ensaio...


Ligia, a moça do café: paciência com os artistas...

Dias depois fotografei Lígia, a moça do café.
Era um tipo bem brasileiro, bonita em sua simplicidade.
Assim nasceu o Retratos da Vida, um sonho antigo.

Marco Angeli, dezembro de 2006 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

A MOÇA DO CAFÉ by Freddy Lima

Olha só a moça do Café, com certeza ela nem imagina 
por onde andará seu retrato e nem por quantas pessoas poderá ser visto...
Mas, assim mesmo aceitou posar para o artista que 
emprestou cores para retratá-la. 
A Lígia é uma típica garota brasileira, traços fortes e miscigenados, 
sorriso festivo (embora ausente neste retrato, quem a conhece sabe) 
e também menina trabalhadeira que conhece bem os clientes do café.

Café durante o dia, barzinho com cerveja gelada a partir do happy-hour...
Se você puder venha um dia ao local de trabalho da Lígia, a moça do café...
tenho certeza que vai gostar das pessoas que irá encontrar, 
ela mesma poderá lhe apresentar: músicos, artistas plásticos, 
jornalistas, advogados, guias de turismo, e outras figuras...
Certeza... A única certeza é a do seu olhar, preste bem a atenção, 
é objetivo, misterioso e doce.
Lígia, por favor... Café para dois.

Fred Lima, dezembro de 2006 

ACAMPAMENTO CIGANO I Iara Bernardes

Num domingo do mês de setembro eu estava comendo num restaurante de um shopping numa cidade a 42 Km do marco zero de São Paulo quando o artista plástico Marco Angeli ligou me convidando para irmos, ele, sua assistente Eriane, eu e o vereador Akdenis visitar um acampamento cigano existente muito próximo de onde eu estava.
O Marco tinha uma idéia na cabeça que virou mesmo um personagem francês de quadrinhos: Ideiafix. Na verdade o artista nos convenceu a sonharmos o sonho dele... Assim, lá fomos nós conhecer um acampamento cigano, na cidade de Itapevi, num domingo vago.
Como tinha chovido muito no sábado, ao chegarmos ao local encontramos muitas poças dágua e muito barro...
Algumas barracas armadas num terreno que não faço idéia quanto às medidas, mas muito grande... De cara, até por todos os preconceitos do Ocidente, imaginei que as barracas estariam em petição de miséria, por causa do terreno, da chuva e tudo o mais... Surpresa! Logo na primeira barraca, encontramos tudo impecavelmente limpo, organizado, do lado de dentro tudo muito lindo... Aliás, o que mais chamou a atenção foram os aparelhos eletrônicos, tudo de primeira geração, tecnologia pura... Tantas sedas e panos coloridos... Visualizamos a primeira mulher... Uma moça absurdamente bonita, com roupas de um colorido agressivo, todos os dentes dourados, todo o pescoço e braços adornados com muito ouro... Um cabelo imenso, negro que lhe caía pela silhueta perfeita...Depois dela, enquanto Akdenis nos apresentava para mais ciganos, o Marco, com o olhar do artista, já disparava flashes em sua máquina fotográfica sem parar...Afinal, o artista possui uma liberdade e uma sensação de espaço muito diferente da nossa...Nosso guia Akdenis é um rapaz libanês que cresceu nas ruas de Itapevi, de família tradicional no lugar, com toda sua forma de vida, hoje é uma das pouquíssimas pessoas que tem acesso ao acampamento. Só pudemos entrar lá porque ele estava franqueando nossa visita...

Conforme o “Tchaco” (chefe) do acampamento, senhor Geneci (um homem grande de mãos enormes, olhar fixo e forte), o Akdenis é uma pessoa de sua confiança e uma pessoa que entende o espírito e as necessidades do seu povo e do seu acampamento. O Tchaco é casado com a cigana Sônia com quem teve dois filhos (muito lindos, aliás), ambos casados e agora um deles já lhes deu o primeiro neto. Esta união de Geneci e Sônia é de 23 anos. Sônia, uma mulher muito elegante, vestida de ouro da cabeça até os pés, envolta em seus panos coloridos, me conta que Geneci a roubou quando ela tinha 13 anos. Foi um amor fulminante... A barraca de Sônia e Geneci, é a mais movimentada do acampamento e também muito espaçosa. Ela faz um café maravilhoso, que você começa a beber e não quer parar mais. E é justamente na barraca deles que conhecemos Márcia e seu marido garrô (homem não cigano) senhor Geraldo. Márcia conta que seu casamento foi uma grande exceção. Mulheres ciganas não podem se casar com homens não ciganos. Mas, quando ela conheceu o marido, não estava em nenhum acampamento. Com o Geraldo ela teve dois filhos. Seus filhos também são uma exceção, pois o rapaz é advogado e a moça é enfermeira. É que normalmente as crianças ciganas não estudam, aprendem a ler e escrever com seus pais nos acampamentos e dão continuidade aos negócios da família. Márcia é artista plástica e não mora neste acampamento. Ela vem visitar seus pares. O casal mora na Serra da Cantareira e segundo a artista, ela tem montada num patamar de sua casa a sua própria tenda, porque não consegue ficar em espaços fechados por muito tempo, como é o caso de nossas casas, nós pobres gaigins! Ela explica que ciganos tem espírito como o dos pássaros, são livres, não gostam de se sentirem presos...

ACAMPAMENTO CIGANO II Iara Bernardes

Sônia e Márcia explicam como funciona a existência da mulher cigana neste universo, que de passagem é muito diferente do que estamos acostumados. Porém para elas tudo é absolutamente coerente e natural. Conforme essas duas ciganas muito experientes, toda moça cigana deve se casar virgem. Vestindo branco e logo após as núpcias a noiva tem que levar a prova de sua castidade, exibindo seus lençóis manchados de sangue e apresentá-los aos pais de seu marido. Sempre acompanhada de sua mãe.

Elas nos contam também que todas as mães preferem ter filhos homens. Mas isso tem um motivo fortíssimo nesta cultura. A sogra tem um papel imprescindível na vida das moças que se casam com seus filhos. Essas moças casam-se muito cedo, perto dos treze anos e da primeira menstruação. Até por conta da biologia desse povo que tem suas raízes há muito tempo encravadas na história da humanidade, as meninas ciganas costumam menstruar próximas de seus treze anos de idade. Então a sogra é quem vai cuidar dessa nova filha. As sogras depois que seus filhos homens se casam, irão lavar, cozinhar, passar, arrumar tudo para o novo casal. Elas também são responsáveis em ensinar métodos contraceptivos para suas noras. No momento em que percebem a maturidade de suas “filhas” (as noras), as sogras as incentivam a engravidar. Normalmente os casamentos entre famílias ciganas acontecem a partir da escolha da família dos homens. Para os homens ciganos, a partir dos treze anos, as meninas estão prontas para se casar. Moças com 16, 17 anos, que não conseguiram ser escolhidas por famílias, são consideradas velhas dentro do acampamento. Outro dado muito interessante está relacionado com os cabelos das mulheres. Elas só podem cortá-los quando ficam viúvas ou perdem um filho. Os cabelos longos são uma obrigação feminina. Nas histórias de amor que Sônia e Márcia nos contam, confidenciam que mulheres ciganas nunca se separam. Caso isso venha a acontecer (o que é absolutamente improvável), os maridos deixam suas tendas e elas nada exigem deles e ficam com os filhos. No caso da paixão de um homem não cigano por uma moça cigana, este pobre miserável, queimará seu coração por toda sua existência, pois esta união não é possível. Já no caso de um homem cigano se apaixonar por uma mulher não cigana, esta relação é absolutamente possível, porém a mulher escolhida, deverá se mudar de “mala e cuia” para o acampamento de seu marido.

Este acampamento cigano está instalado em Itapevi há muitos anos. Eles vão e vêm, afinal são nômades, mas no caso do Tchaco e sua família a situação é um pouco diferente. Suas responsabilidades para com o acampamento são maiores. Hoje o senhor Geneci quer montar uma escola para suas crianças ciganas. Precavido com relação à total falta de cultura e conhecimento que a sociedade em geral tem de sua gente, o Tchaco por proteção não deixa que suas crianças freqüentem escolas não ciganas e também não os quer brincando nas ruas, ou com outras crianças que não sejam ciganas. Por isso sua vontade de estar montando uma escola específica para as crianças de seu acampamento. Conforme Geneci, a vertente de seus atuais negócios, que são a compra e venda de automóveis, provém das gerações anteriores da gente que povoou este grupo, vindo de Minas Gerais, quando seus antepassados viviam da venda, troca e compra de cavalos.


O SAGRADO:

Geneci, Sônia, Márcia e todos os outros que acabam formando um grupo grande dentro da barraca do Tchaco, contam sobre a única Santa Cigana reconhecida pela própria Igreja Católica: Santa Sara Cigana de Cali. Muito devotos da Santa, na maioria das barracas podemos ver sua linda imagem. O dia de Santa Sara Cigana de Cali é comemorado em 25 de maio, porém todo acampamento faz 3 festas por ano em homenagem a ela.
As celebrações de casamentos são muito parecidas com as dos católicos, até por que esses ciganos são católicos. No entanto, quem celebra é um padre cigano, que é convidado especialmente para celebrar esses matrimônios.
Eles também nos contam que comemoram neste acampamento o dia de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, com uma linda festa, com muita comida, vinhos e frutas. Nestas comemorações sagradas é que se pode ver a dança cigana, uma das características culturais deste povo extremamente bonito, sensual e rico. Somente nestes dias de comemorações sagradas é que se poderá observar um pouco os tornozelos das moças ciganas, elas não podem mostrar suas pernas, nunca!

Uma curiosidade também é que todas as mulheres ciganas quando entram no mar, só o fazem de roupa, sempre. Hoje, neste acampamento, ainda usam entre si palavras de um dialeto de uma linguagem que me explicam se chama “Chiibi”.
Toda a hierarquia cigana é extremamente respeitada, especialmente pelas mulheres. No entanto, apesar do nosso entender repleto de concepções machistas ao ouvirmos suas histórias, elas nos garantem que são muito felizes e dão muita risada da nossa situação. Afinal, eu e Eriane já passamos dos 13 anos a muito tempo e ainda não nos casamos, não temos maridos, nem filhos. Para as mulheres ciganas, nós é que somos muito diferentes!

Ah! O Marco? Cadê o Marco, nos perguntamos!
Olhamos pruma barraca distante e lá estava ele, deitado literalmente no barro, tirando seus retratos, as crianças embevecidas com aquele homem de sorriso infantil e com uma máquina apontando pra eles... Do sonho dele...

Das fotos, seus retratos, de tudo isso, uma história... Absolutamente improvável, absolutamente inesquecível...

Iara Bernardes - Dezembro/2006