segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

CHUVA, CHUVA by Marco Angeli


Chuva, chuva.
Na estrada, através dos limpadores de parabrisas furiosos,
vejo as pessoas empilhadas, as filas de carros debaixo da chuva que cai.
Pessoas que voltam de algum lugar. 3 de janeiro.
Escuto Eric Clapton no rádio, estranha solidão, essa, que me devolve
a muitos anos atrás, décadas.
Ando pelas ruas de São Paulo.
Apenas ando, não estou feliz, mas não estou triste.
Ajudo uma senhora a atravessar a rua, distraído, e carrego seu guarda chuva
providencial. Chove. Ela fala alguma coisa, não escuto. Ando.
Na frente do banco passo rápido pela mulher sentada no único pedacinho
seco da calçada que -com uma criança no colo- pede centavos.
Passo batido mas meus olhos não, eles gravam a cena, vício
obtido não sei onde, á custa de olhar e olhar.
Não dou os centavos porque ando, meus pés se movimentam.
Me arrependo mas já é tarde, tarde demais.
Meus olhos gravam a cena.
 3 de janeiro, e a vida volta ao normal.
Cruelmente, cruamente. Eu poderia ter fotografado, penso,
se estivesse com a máquina. Mas não fotografaria.
A sensação é sempre a mesma -a de estar sendo ofensivo- quanto tento
registrar a miséria alheia. Realidade, estupidez. Mas é assim.


 A cidade se movimenta, preguiçosa,
vai se reerguendo desses dias, de má vontade, como um paquiderme
pesado demais. Pessoas sonolentas, irritadas, felizes ou infelizes
pelo ano ter finalmente começado. Ou não.
Dentro do banco uma cliente é anã, muito anã,
e do alto de seus talvez 90 cms de altura observa compenetrada
alguns documentos e espera sua vez.
Observo sem querer observar, mas é claro que ela sabe que eu
a observo sem querer observar, com uma cara de que
anãs são comuns dentro de bancos.
Ando.
Me movimento, aprendi a me movimentar para sobreviver.
Assim, ando.


Na rua meus olhos buscam a calçada, mas a mulher e a criança não
estão mais lá. Voltaram para algum lugar, como todos.
Chuva, chuva.
Andar novamente. Penso num amigo de muitos anos,
deitado na cama de um hospital qualquer, com lesões graves na coluna.
Acidente de moto, 24 de dezembro à tarde. Andar pode ser uma dádiva.
Na estrada, paro no restaurante de sempre, e me arrependo.
Chuva, chuva, gente.
As pessoas circulam -shorts e camisas regata coloridas e péssimas- algumas olham
 curiosas minha jaqueta de couro preto fechada.
 Não me importo.
Deixei de me importar com isso há muito. Nem me lembro se alguma
vez me importei com isso.


As pessoas voltam de algum lugar para recomeçar tudo.
Tomo um suco de qualquer coisa para tentar acalmar meu estômago
que queima -finalmente reclamando de tantos anos de sanduíches e refeições
fora de qualquer horário.
E a imagem da mulher com a criança no colo, a mão estendida,
volta a rodopiar na minha cabeça, insistente, com a clareza
de sempre. Meus olhos, insanos e cruéis, gravam e me mostram a cor
cinzenta de sua blusa, os botões de sua roupa. A luz.
Seu olhar...cansado apenas. Sem hostilidade, sem amor.
Me lembrando que a vida continua e continua.


Engulo o que resta do suco de qualquer coisa e volto para
o carro e para a estrada.
Chove, chove.

Marco Angeli, 3 de janeiro de 2011

4 comentários:

  1. Olhar de poeta é permeável/
    sentir de poeta cansa na fila/
    fala de poeta cospe a miséria
    com a suavidade de poeta, que anda chuva e abre o coração inundado de lira. Um Abraço,Angeli.

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  2. Lí o texto e mentalmente fui transformando-o numa comédia.....sentí uma vontade imensa de brincar, de escrever, de fazer voce rir, mas correria um sério risco em ser enxotada, até como leitora. Agora, o ápice (gargalhei mesmo!!) foi voce terminar o texto datando-o em 3 de dezembro de 2011 hummmmmmmmmmm será que foi o tal suco de qualquer coisa? Vai "tomar" um passe que passa.
    FELIZ 2012!

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  3. Triste não, eu diria cansado, porque não adianta virar o ano, está tudo igual, não é?
    Continua a miséria, as pessoas, os mesmos amigos, o habitual restaurante, o suco, tudo se mantem igual, nada muda porque mudou o Calendário e não adianta chover, só piora, só deixa mais melancólico.
    Gostei da Nota, é Real, é assim mesmo, não adianta mascarar com um sorriso.
    Que bom que escreveu, que notou que tudo está assim, que bom, porque ai está a chance de mudar.
    É SEMPRE UM PRAZER LER TUAS PALAVRAS , TEUS PENSAMENTOS.

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  4. Ontem choveu, hoje também, amanhã e depois tenho certeza que sim.
    O dia que o sol sair...
    Seca o chão com o calor, o dia fica claro
    Quem sabe até podemos sorrir e notar que a roupa também secou e não perceber mais
    o quanto a umidade desses dias incomodou
    A água seca e não mancha...
    Apenas marca
    Era água..

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