domingo, 1 de novembro de 2009

VÔO 3054, REMEMBER?

Estou escrevendo novamente sobre o voo 3054,
como fiz há dois anos.
Estou escrevendo para ser chato mesmo, indo contra a cansada e
velha teoria de que nós brasileiros somos desmemoriados.
Tarefa inútil, sei bem disso.
Estou escrevendo talvez porque são irritantes aquelas frases feitas,
extremamente convenientes na boca de muita gente, tipo
'Bom, já aconteceu mesmo'...ou 'Ainda bem que não foi comigo...'
Pode ser...mas se não tirarmos as devidas lições do que aconteceu e
simplesmente não olharmos para trás, acontecerá novamente.


Saguão do aeroporto, dia da tragédia

E poderá ser com um dos que dizem o
'ainda bem que não foi comigo'.
O que -simplificando- é simplesmente uma atitude burra.
Apostando e acertando na mosca nessa atitude e reação de todos
nós, as autoridades competentes para apurar as responsabilidades
sobre a tragédia que causou a morte de 200 pessoas
levaram dois longos anos,
enrolando o máximo que puderam para chegar á uma conclusão
previsível, em se tratando de fazer o possível e o impossível para
acobertar erros da empresa e autoridades envolvidas no caso, desde
 a manutenção das aeronaves quanto
do próprio aeroporto e sua pista.



Apostando no esquecimento, a Aeronáutica divulga seu relatório
final sobreo caso, com a singela conclusão de que não
existem responsáveis.
E insinua que talvez...os responsáveis sejam os pilotos.
E que se alguém tem que apontar culpados, que seja a polícia,
jogando a tal batata quente em outras mãos.
A PF, por sua vez, corrobora e enfatiza o relatório da CENIPA e
atribui taxativamente aos pilotos,
óbviamente mortos e sem condições de
se defender, a responsabilidade pelo desastre, o que gera indignação
de pilotos e associações por todo o país.



Veja o relatório da Aeronáutica, divulgado 
oficialmente há alguns dias 

Isso tudo, é claro, para quem se deu ao trabalho de acompanhar, foi
publicado há dias pela imprensa,
em letras provávelmente pequenas demais.
Afinal, já nem é mais uma notícia, apenas um relatório previsível,
e a quem interessam os relatórios previsíveis? A ninguém, supõem
acertadamente os peritos da mídia. Infelizmente.
No entanto, com certeza duzentas famílias sofrem.


A reação das famílias das vítimas ao relatório, 
através de seu representante.

Para essas famílias,
um relatório justo seria um paliativo para a perda
de pessoas que amavam, e a certeza de que sua morte, afinal,
não foi totalmente em vão. Mas não é assim.
Quem se lembra ou ouve sequer falar de indivíduos que tiveram
uma participação lamentável no episódio,
como Marco Aurélio Garcia com o gesto famoso e infame
diante de uma tragédia dessas proporções?
Ou do homem da Infraero, João Brás Pereira?
Provávelmente ninguém,
nem mesmo os que os contratam e acobertam.
E sou capaz de apostar que devem estar por aí, nos mesmos
cargos, serelepes como nunca. Dejá vu.
Números. Estatísticas. Pessoas viram números e estatísticas
apenas, dentro de uma planilha qualquer, e se concluí imbecilmente
que, pela média, nunca foi tão seguro voar.



Morre-se mais no trânsito, por fumar, ou outra coisa qualquer, e
estabelece-se que, afinal, 200 é um número pequeno demais.
E pronto. A mídia colabora, e o caso está prontinho para
ser arquivado, mais uma fatalidade apenas entre outras.
No entanto, para os que perderam alguém querido nessa tragédia,
200 é um número enorme.


Alguns dos passageiros do vôo 3054. Fatalidade?

E tem uma importância crucial, principalmente na apuração
real dos fatos. Se foi ou não uma fatalidade.
E se poderia ou não ter sido evitada.
Isso, ao que parece, esteve longe de acontecer, já que em todos
os relatórios, depois de dois longos anos, nem sequer mencionam
o estado da pista, causador de polêmica na época, ou as
condições especificas de vôo da aeronave, responsabilidade da TAM.
Mais algum tempo e a tragédia estará devidamente esquecida,
substituída no noticiário por outras que virão e passarão.
E seremos chamados de desmemoriados.
Com razão, é claro.


Manifestação em São Paulo pelas vítimas.
As fotos e imagens são do site G1.

Se houve ou não descaso, incompetência, isso também passará.
Impune.
Mas, cruelmente, a dor dessas famílias não passará.
E isso está muito longe de ser apenas uma estatística.

Sou artista plástico.
Eventualmente algumas pessoas, racionalmente demais,
me sugerem escrever apenas amenidades relacionadas
ao meu trabalho, acham que o que acontece no mundo...
bom...'lamento, mas não é comigo.'
Essa é mais uma das frases de minha coleção de
afirmações irritantes, talvez a pior.
Leio no livro de Stieg Larsson, A Rainha do Castelode Ar, 
o último da genial trilogia, que a democracia
sueca está baseada e sustentada por uma única lei,
yttrandefrihetsgrundlagen, cuja sigla é YGL, a lei
fundamental sobre liberdade de expressão. A YGL estabelece
o direito imprescritível de dizer, ter como opinião, pensar 
e acreditar em qualquer coisa à todo cidadão.
Não estamos na Suécia, dirão.
Infelizmente, respondo.


Marco Angeli, novembro de 2009 

Um comentário:

  1. Seu eu escrevesse algo bem simplório, dando os parabéns ao artista plástico MARCO ANGELI,dono do blog, pela consciencia de cidadania e política seria o óbvio...soariam, certamente, como frases feitas por alguém suspeito, em admirar suas obras.
    Fazer de conta de que nao lí,desperta em mim um sentimento de hipocrisia para com alguém que quando diz ou escreve algo, sabe justamente aonde quer chegar.
    O texto em sí nao me parece só um desabafo pela da falta de memória do povo brasileiro. No transcorrer da leitura, vamos perceber que por trás das palavras há um homem que se importa, sim, e que tem carater para escrever ou dizer o que está sentindo com
    o descaso, nao apenas das autoridades, mas como nós, cidadaos brasileiros, estamos escrevendo a nossa história.
    Portanto, até podemos fazer de conta de que nao é conosco...sequer lembrarmos do homem do TOP TOP, mas acredito que o RETRATOS DA VIDA, através de seu dono, está sempre mostrando a que veio, nao permitir que tragedias como esta, vire apenas RETRATOS SEM VIDA.

    elisa

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