Há alguns anos participei de uma mostra coletiva no
extinto -infelizmente- espaço Cultural Blue Life,
em São Paulo, juntamente com alguns artistas expressivos,
entre eles Taumaturgo Ferreira, que também pintou
a cidade como eu.
Um dos trabalhos dessa mostra me impressionou
especialmente, tanto pela técnica quanto pela temática.
Era uma das pinturas de
Canato para sua série
"Pessoas à Margem", uma tela grande, à óleo,
pintada com um esmêro absoluto, retratando
cruel e poéticamente uma realidade nossa e cotidiana.
Massacre dos Inocentes, 100 x 120 cm, óleo sobre canvasFumando Bituca, 70 x 100 cm, óleo sobre canvas DetalheParei diante da tela de Canato e pensei em quantas
vezes estive tentado a pintar essa mesma
realidade e não o fiz. E, de certa forma, foi uma
satisfação ver o tema pintado ali
com tanta maestria, de uma forma tão séria.
Comendo Lixo, 100 x 100 cm, óleo sobre canvasDetalheHá dias recebi uma entrevista em que Canato
fala sobre a arte no blog
Diversos Afins,
de Fabrício Brandão e Leila Andrade.
Achei muito interessantes e pertinentes algumas
das observações de Canato, principalmente
sobre a educação artística no Brasil e
os caminhos da arte por aqui.
Canato tem a ousadia de declarar que seu
trabalho se baseia nos artistas
renascentistas como Botticelli, Caravaggio,
Ticiano e mesmo Rembrandt.
Essa declaração seria, óbviamente, uma temeridade
vindo de qualquer artista, uma responsabilidade
gigantesca, fácilmente confundida com uma pretensão
descabida, sonhadora. Já vi isso acontecer, e
muitas vezes.
Madona Negra, 60 x 70 cm, óleo sobre canvasCanato, Auto RetratoMadalena, óleo sobre canvasNo entanto, nas mãos de Canato, suas obras -executadas
com talento e com uma seriedade
absoluta em relação à essa proposta- cumprem
e mesmo transcendem os mestres que a
influenciaram, sem a menor dúvida.
O Estado de São Paulo, 100 x 100 cm, óleo sobre canvasPedi ao Canato para reproduzir alguns trechos
da entrevista de Diversos Afins, feita por
Fabrício Brandão:
"(...)Utilizando-se de temas que permeiam aspectos sociais
e simbólicos, a obra de Canato se agiganta
quando os olhares se voltam para as nuances humanas
expostas nas mais variadas expressões de suas telas.
Ali, cada forma, tom ou gesto refletem um pouco das densidades
tão presentes no espírito dos homens.
Conversando conosco, Canato fala um pouco sobre seu
processo criativo e influências, os rumos da arte contemporânea
e alguns outros assuntos que o posicionam como um artista
definitivamente engajado com as questões de seu tempo."
DA - Sua arte, sobretudo através dos recortes humanos,
reflete um experimentar de sensações que percorrem
tons existencialistas. Que tipo de desejo orienta esse seu olhar?
CANATO - O desejo de ser uma pessoa melhor
e de tentar fazer do mundo um mundo mais humano,
mais justo e, se possível, mais belo.
Através desses recortes, vejo a mim mesmo multifacetado.
Tento entender melhor quem sou, principalmente no
que posso me transformar e, dessa forma, contribuir
como artista e como ser humano.
Acho que essa é uma maneira de ser e existir,
de experimentar e absorver o mundo, sofrer e viver de forma
intensa o real. Viver é uma estética.
Sem essa experiência o artista não cria de verdade.
É preciso intensidade e muita entrega para entender
o mundo e poder interpretá-lo, traduzi-lo, pintá-lo e transcendê-lo.
Claudio Canato, ateliê
DA - A estética Barroca e Renascentista que atravessa
a sua obra enaltece o propósito de representar
as expressões humanas com mais vivacidade e precisão.
A opção por tais escolas sempre fez parte de seu trabalho?
CANATO - (...)O Barroco talvez seja a escola que mais me
fascina, mas a Renascença foi “o grande momento” da arte.
Meus trabalhos devem muito a Botticelli, Ticiano, Caravaggio
Rembrandt e a todos que trago dentro de mim.
Sem a ajuda deles eu não teria conseguido certos
avanços técnicos. Essas foram influências escolhidas a dedo,
mas sempre com a preocupação de ser eu mesmo.
Sou da pintura e, definitivamente, um artista da figura.
Posso dizer que não foi simples chegar até aqui.
Não é tarefa fácil, hoje em dia, trilhar tais caminhos, mas é
o que gosto de fazer e o que tenho
de mais verdadeiro dentro de mim.
O importante é fazer o que se acredita.
Não vejo necessidade de romper com nada, nem abandonar nada
para ser novo, seja suporte, seja técnica, e, principalmente,
o que se acredita.
Basta ser você mesmo, isso só já faz de um trabalho único.
O importante é produzir de forma honesta
e o mais sincera possível. E produzir com amor, isso é essencial.
As Éguas de Diomedes, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA - Certa feita você assinalou que havia muita falta
de preparo por parte de gente que se propõe a ensinar arte,
aspecto que muitas vezes chega a limitar em demasia a
criatividade dos aprendizes. Isso ainda é muito frequente?
CANATO - Infelizmente, assistimos hoje a uma total
banalização das coisas, dos valores, e o ensino não
ficou livre desse fenômeno.
A crise do ensino se reflete diretamente na crise atual da arte.
Embora haja uma preocupação cada vez maior com
a educação, não se pode dizer que o que se ensina,
na maioria das escolas, seja arte, com raríssimas exceções.
O ensino de arte foi reduzido a meros trabalhos
de “dia dos pais”. Muita coisa precisa ser mudada.
Embora muitas pessoas bem intencionadas e preparadas
estejam conseguindo realizar seus projetos,
ainda há muito por fazer.
Gosto da ideia de ensino multidisciplinar com a arte
permeando todas as outras matérias, o que tornaria o
aprendizado mais significativo e menos mecânico.
O professor assumiria o papel de gerenciador
de capacidades e de estimulador de talentos.
(...) Sonho em ver a arte presente na vida das pessoas
não como entretenimento e passatempo, mas integrada
à própria vida, e as pessoas, de fato, fazendo
um uso mais consciente dela. Talvez aí o mundo melhore.
O Touro de Creta, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA- Ainda há a questão de que criatividade e
domínio técnico nem sempre fazem par constante...
CANATO - Em decorrência da deficiência do ensino,
é cada vez mais raro encontrar um artista mestre
de seu ofício, que domine de fato alguma técnica.
Bons pintores estão quase em extinção.
Hoje o fazer artístico não requer prática nem habilidade,
a produção é efêmera e, na maioria das vezes,
está em segundo plano,
mais vale uma boa rede de relacionamentos.
A produção é cada vez mais submissa a discursos
muito bem “elaborados”, que mascaram um conteúdo
inexistente ou, propositadamente, tornam-no inatingível.
Dessa maneira, a criatividade é desperdiçada em elucubrações
cada vez mais distantes de nossa realidade,
a obra se esvaziou e, como consequência, o público se afastou.(...)
Os Pomos de Ouro das Hespérides, da série
Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA - Há um viés social muito forte
na sua série Pessoas à Margem.
Acredita que a arte pode atenuar certos incômodos
tão nossos?
CANATO - A arte não só pode atenuar esses incômodos
como pode transformá-los.
Leonardo dizia que “O belo toca o coração...” e acho que,
de forma irreversível, as pessoas se transformam
através da arte e cabe a elas transformar o mundo.
A série Pessoas à Margem foi extremamente importante
no meu processo de crescimento como artista
e como ser humano. Tive oportunidade de conhecer pessoas
e ter contato com realidades totalmente diferentes da minha,
que me fizeram questionar tudo e querer mudar tudo.
A Corça de Cerínia, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA - Como você percebe a questão da sobrevivência da aura
do objeto artístico face a um mundo tão
cheio de ruídos e distorções interpretativas?
CANATO - (...) A obra verdadeira é independente,
autônoma e atemporal.
A arte pura nunca morre, o objeto artístico nasce eterno
e pode até, num primeiro momento, ser desprezado
e restar esquecido por séculos em algum porão,
mas, quando vem à luz, é por todos reconhecido e reverenciado.
Tenho uma teoria: a medida do gênio de um artista está
diretamente relacionada ao tempo que sua obra
leva para ser entendida e aceita.
Se um trabalho leva cinquenta anos para ser compreendido,
o artista estava cinquenta anos à frente do seu tempo.
O Cinturão de Hipólita, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
O Javali de Eriamanto, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA - Corremos sérios riscos atribuindo valores
a tudo o que se apresenta nessa enxurrada?
CANATO - (...) A resposta a essa pergunta é sim,(...)
Há alguns anos, uma matéria do Arnaldo Jabor dizia
que “a arte contemporânea se encontrava num beco sem saída”.
Segundo Affonso Romano de Sant’Anna,
vivemos hoje o que ele chama de “Anomia Ética e Estética”,
as artes moderna e contemporânea devem ser reavaliadas.
São pensamentos que devem ser levados a sério,
pois muito do que hoje se produz “artísticamente”
é lixo e passa despercebido nessa enxurrada.
A Hidra de Lerna, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
As Aves do Lago Estínfalo, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA - A série Os Doze Trabalhos de Hércules
marca um momento muito especial em seu trabalho,
equilibrando os contornos vivos de formas e expressões
das personagens com uma valiosa pesquisa histórica.
O que mais o motivou
a recriar esse verdadeiro ícone mitológico?
CANATO - De fato, é um bom momento,
momento de muita segurança.
Pela primeira vez, sinto-me no domínio pleno do meu trabalho,
livre para criar. Não quero dizer que tenha chegado ao auge,
mas acredito que minha produção mais verdadeira começa agora.
Trabalho nessa série há pelo menos dez anos.
Sou apaixonado por mitologia e principalmente por simbologia
e os Trabalhos de Hércules me fascinam desde pequeno.
Lembro que meu primeiro contato com
o herói foi nos livros de Monteiro Lobato.
Esse é um mito fascinante e recriá-lo foi como desconstruir
a mim mesmo, e o mais interessante foi descobrir
que somos todos heróis em potencial.
A Busca do Cão Cérbero, da série Os Doze Trabalhos de Hércules.
DA - “A Pintura é o retrato dos mais belos sonhos da Poesia”.
O quanto esse pensamento ajuda a dimensionar seus olhares?
CANATO - O poeta trabalha imagens da mesma forma que o pintor.
As duas artes são muito íntimas e o diálogo
entre elas é muito rico.
O artista lê o mundo através do que eu chamo de “códigos do belo”.
Esse é um olhar diferenciado, que vê beleza em tudo
e tudo através da beleza.
Arrisco até a dizer que nós, pintores,
também somos poetas, poetas da cor.
Esboço de CanatoDe minha parte, é mesmo uma satisfação saber e poder
registrar que existem artistas como Claudio Canato -raros- executando
seu trabalho com seriedade, postura e
esse talento todo.
Bom que seja assim, ou estaríamos soterrados por todo
esse lixo que a mídia, principalmente, despeja o tempo todo
sobre nossas cabeças, à exemplo do macaco que pinta
da rede Globo. Típico como sempre.
Ainda bem que eles ainda não descobriram o pequinês
ou a égua que pinta, nos EUA.
Ou um maluco, na Inglaterra, que pinta celebridades
com o próprio instrumento, ou seja, o pinto.
Em tempo: participei do Forum de Artes Visuais de Barueri,em São Paulo, nos debates com o público e comomediador, em São Paulo.Foi uma iniciativa inédita da Secretaria da Cultura, muito interessante.Aguardo apenas o material para colocar aqui no blog.Marco Angeli, maio de 2009